PARA CRIS
Agora escrevo pássaros.
Não os vejo chegar, não escolho,
de repente estão aí,um bando de palavras
a pousar
uma por uma
nos arames da página,
entre chilreios e bicadas,
chuva de asas,
e eu sem pão para dar,
tão somente deixo-os vir.
Talvez seja isto uma árvore,
ou quem sabe, o amor.
OS AMANTES
Quem os vê andar pela cidade se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala entre seus dedos,
línguas doces lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.
São os amantes, sua ilha flutua à deriva rumo a mortes na relva,
rumo a portos que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem que enquanto rodam em sua amarga arena há uma pausa na criação do nada o tigre é um jardim que brinca.
Amanhece nos caminhões de lixo, começam a sair os cegos, o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam uma vez mais antes de haurir o dia.
Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então, quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita e lhes impõe os seus deveres quotidianos.
Toco a tua boca.Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Por Julio Cortázar (1914-1984); tradução de
Sidnei Schneider, 2007.
6 comentários:
Li apenas um livro dele e me perturbou tanto que nunca mais li nenhum. Devia ler, para desfazer a impressão. O livro que eu li era de contos, "Bestiário". Brrrr...
é, vc. começou pesado, "bestiário" é mesmo complicado!
bjocas!
Claro, caro sidnei.corrigido!
peço desculpas pelo ocorrido.
ok, pablo. esclareço que traduzi
apenas o poema para cris. abraço
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