Trechos do depoimento de Nato Lima a Luís Nassif, da Folha de São Paulo, em fevereiro de 2004.
Ver íntegra do material em http://www.lainsignia.org/2004/febrero/cul_014.htm
O índio tabajara
Natalício Moreira Lima, o solista do duo Índios Tabajaras, mora em Nova York, perto do Central Park. Com seu irmão Antenor foi sucesso internacional nos anos 60 e 70. Em 1963, sua gravação da "Maria Elena" superou 1,5 milhão de discos vendidos, desbancando os Beatles na lista dos mais vendidos.
O depoimento a seguir foi concedido no dia 29 de janeiro, por telefone.
"Nasci na serra do Ibiapaba, entre Piauí e Ceará. Nesta serra, em 1929, existia Ubajara, cidade pequena, lugar famoso hoje. Naquela época não era. Um dia apareceu por lá uma tropa de militares, chefiada pelo tenente Hildebrando Moreira Lima.
Era muita gente e mudou nossa história. Não tínhamos cidade, éramos uma tribo mesmo, fomos criados na tribo Tabajara, morando em um terreno que não era nem Ceará nem Piauí, era uma área de litígio.
Nós fomos em três irmãos até lá, chegamos lá e começamos a comer fruta enorme, besta, que não vale nada, chamada Ingá, maior que feijão e contém espécie de algodão em volta, muito doce, muito bom.
Quando olhamos, vimos um violão, metemos a mão, fez aquele som, levamos um susto.
Levamos para tribo. Naquela época, os índios não deixavam ninguém chegar a menos de 600 metros dali. Vivíamos isolados. O violão causou transtorno na tribo. Havia outro som que escutávamos às seis da tarde, e não sabíamos o que era. Nós, pequenos, pensávamos que era violão. Era sino de cidade a uns 60 quilômetros dali, o sino de Ibiapina, assim chamada porque lá era terra completamente pelada.
Usavam muito medicina de mato. Eu gostava de comer barro e passava mal. Tinha vício daquilo e quase morri. Os curadores diziam que eu iria morrer daquilo, porque criava bicho na barriga.
O povo trouxe roupa, calças, vestidos para minha tia e minha mãe . E começamos a usar roupas. Quando fomos embora, roupa não era muito confortável. A do meu pai era muito grande.
Ficamos oito, nove dias em Fortaleza. E o camarada que nos trouxe de Sobral hospedou na casa dele. O pai ajudou a cavar um poço que chegou a dar água na casa dele.
Em casa, não havia nada que comer e nós começamos a querer plantar alguma coisa, igual o povo do sertão faz: limpa terra, bota fogo e começa a plantar feijão e milho. O foguinho apagou fácil. Fomos para casa descansar um pouco, foguinho começou a pegar fogo, pegou em toda a serra do Araripe. Às oito da noite muita gente veio ajudar para apagar o fogo. Uma meia-noite ainda era claro como o dia. Foi o fogo maior do sertão. Mais de quarenta dias, toda serra de um lado a outro.
Meu pai conseguiu escapar de lá e foi até onde nós estávamos. O coronel descobriu que fomos nós, levamos surra horrível.
Resolvemos sair por nossa conta. Minha mãe, antes de morrer, tinha o filho número15, e tivemos que deixar com gente do sertão, gente boa que nos dava comida.
Algumas vezes cantávamos com aquele violão que havíamos encontrado, mas não era tocando, era batendo, fazendo ritmo indígena. Vimos violonista tocar e passávamos o dia inteiro escutando. Chegava a hora de urinar, não sabíamos aonde mas agüentávamos escutando aqueles violonistas, que era uma coisa muito bonita.
Depois fomos caminhando pelo sertão e trocamos violão por quatro quilos de feijão. Fomos andando, passando Bahia e outras localidades até chegar ao Rio de Janeiro.
Quando chegamos ao Rio, no centro da cidade tinha lugar que se chamava Praça da Harmonia. Tinha lugar que se chamava Albergue da Boa Vontade. Lugar onde nós tomavamos banho, depois nos vestiam com saia branca e nos davam cama. Nós nunca havíamos dormido em cama, e tinha café de manhã e mate. Passamos uns quinze dias lá.
Ali conhecemos, do lado de fora, sujeito que trabalhava com bandeirola do trenzinho. E ele nos disse assim: porque não vão morar em Realengo, lugar muito bonito, tem casas boas(...) A casa não tinha telha, mas era uma casa. Ainda hoje nos pertence. Meu irmão mais velho é quem toma conta, fica na rua Tecoté 69. Moramos dois ou três anos. Dali fomos à Ilha do Governador, meu pai comprou uma terra.
Não aprendi a ler, mas aprendi a tocar melhor violão quando fizemos uns serviços no Ceará. A música nos entrou muito forte. A música popular naquela época era muito boa, (cantarola) " porque bebes tanto assim, rapaz? ...".
Quando chegamos no Rio, tocava muito pouquinho. Depois fiz Serviço Militar, passei três anos e aprendi a tocar melhor. E consegui violão de quatro cordas Del Vecchio, violão tenor, sim.
Aprendi a tocar bastante bem. E saí do Exército porque um sargento começou a implicar comigo, porque eu tocava nos aposentos que pertencem a cabos e sargentos. Eu era cozinheiro, porque eu gostava de comer e de café. O sargento começou a pedir alguma música que eu não entendia. "Se você não toca, pára com essa charanga", disse e veio para mim como se fosse bater. "Eu vou lhe enfiar a mão". Eu disse: se enfiar a mão na minha cara, eu vou enfiar também. Apartaram e fui preso por sete dias.
Então comecei a tocar um pouco pelas ruas. Tinha 16 anos, mas não tinha tamanho. Não tenho mais que 1,70. Era o mais alto da tribo. Aliás, o mais alto tinha dois metros, era o tio Ta. O nome era Ipeutá. Mas o resto era tudo baixinho.
No Rio, começamos a tocar na rua. E nos jogavam algum dinheiro e a gente ia vivendo bem, mas dava muita vergonha porque éramos grandes, já.
Então fomos dar uma prova numa estação de rádio. Fomos falar com diretor da Cruzeiro do Sul, o Paulo Roberto. Perguntou: vocês são de que tribo? Cantávamos de uma maneira estranha.
A gente não dizia que era índio, porque as pessoas tinham medo. Ele insistia: mas vocês têm cara de índio, a linguagem de vocês é muito estranha.
Resolveu dar um contrato por uma semana e um conto de réis, que era muito dinheiro para nós. Na rua, ganhávamos dois mil réis no máximo . Aï contamos que nós éramos Tabajara. Aí disse que ia anunciar a gente como Índios Tabajaras. E o povo gostou.
Ficamos outra semana. Dali fomos trabalhar na Casa do Caboclo, que tinha shows, tinha o Apolo Correia, ator. Nosso trabalho era entrar na cena com violão, cantar coisa indígena, a gente saía e entrava de novo, o povo ria muito.
Estreamos no Cassino, mas tocamos muito bem, cantamos bem. Nenhum dos outros nossos irmãos gostou de música, porque demanda inteligência, determinação, insistir, insistir, repetindo, repetindo.
Aparecemos em revista. Mas o dinheiro que cobrava era muito pouco. Chegamos a ir a São Paulo e Buenos Aires, com um espanhol que se chamava José Montoja, que falou com um dos diretores da rádio El Mundo: "Jo tengo aqui dois artistas índios que são um sucesso estrondoso". Diretor de rádio gosta dessa história de sucesso estrondoso.
Ver íntegra do material em http://www.lainsignia.org/2004/febrero/cul_014.htm
O índio tabajara
Natalício Moreira Lima, o solista do duo Índios Tabajaras, mora em Nova York, perto do Central Park. Com seu irmão Antenor foi sucesso internacional nos anos 60 e 70. Em 1963, sua gravação da "Maria Elena" superou 1,5 milhão de discos vendidos, desbancando os Beatles na lista dos mais vendidos.
O depoimento a seguir foi concedido no dia 29 de janeiro, por telefone.
"Nasci na serra do Ibiapaba, entre Piauí e Ceará. Nesta serra, em 1929, existia Ubajara, cidade pequena, lugar famoso hoje. Naquela época não era. Um dia apareceu por lá uma tropa de militares, chefiada pelo tenente Hildebrando Moreira Lima.
Era muita gente e mudou nossa história. Não tínhamos cidade, éramos uma tribo mesmo, fomos criados na tribo Tabajara, morando em um terreno que não era nem Ceará nem Piauí, era uma área de litígio.
Nós fomos em três irmãos até lá, chegamos lá e começamos a comer fruta enorme, besta, que não vale nada, chamada Ingá, maior que feijão e contém espécie de algodão em volta, muito doce, muito bom.
Quando olhamos, vimos um violão, metemos a mão, fez aquele som, levamos um susto.
Levamos para tribo. Naquela época, os índios não deixavam ninguém chegar a menos de 600 metros dali. Vivíamos isolados. O violão causou transtorno na tribo. Havia outro som que escutávamos às seis da tarde, e não sabíamos o que era. Nós, pequenos, pensávamos que era violão. Era sino de cidade a uns 60 quilômetros dali, o sino de Ibiapina, assim chamada porque lá era terra completamente pelada.
Usavam muito medicina de mato. Eu gostava de comer barro e passava mal. Tinha vício daquilo e quase morri. Os curadores diziam que eu iria morrer daquilo, porque criava bicho na barriga.
O povo trouxe roupa, calças, vestidos para minha tia e minha mãe . E começamos a usar roupas. Quando fomos embora, roupa não era muito confortável. A do meu pai era muito grande.
Ficamos oito, nove dias em Fortaleza. E o camarada que nos trouxe de Sobral hospedou na casa dele. O pai ajudou a cavar um poço que chegou a dar água na casa dele.
Em casa, não havia nada que comer e nós começamos a querer plantar alguma coisa, igual o povo do sertão faz: limpa terra, bota fogo e começa a plantar feijão e milho. O foguinho apagou fácil. Fomos para casa descansar um pouco, foguinho começou a pegar fogo, pegou em toda a serra do Araripe. Às oito da noite muita gente veio ajudar para apagar o fogo. Uma meia-noite ainda era claro como o dia. Foi o fogo maior do sertão. Mais de quarenta dias, toda serra de um lado a outro.
Meu pai conseguiu escapar de lá e foi até onde nós estávamos. O coronel descobriu que fomos nós, levamos surra horrível.
Resolvemos sair por nossa conta. Minha mãe, antes de morrer, tinha o filho número15, e tivemos que deixar com gente do sertão, gente boa que nos dava comida.
Algumas vezes cantávamos com aquele violão que havíamos encontrado, mas não era tocando, era batendo, fazendo ritmo indígena. Vimos violonista tocar e passávamos o dia inteiro escutando. Chegava a hora de urinar, não sabíamos aonde mas agüentávamos escutando aqueles violonistas, que era uma coisa muito bonita.
Depois fomos caminhando pelo sertão e trocamos violão por quatro quilos de feijão. Fomos andando, passando Bahia e outras localidades até chegar ao Rio de Janeiro.
Quando chegamos ao Rio, no centro da cidade tinha lugar que se chamava Praça da Harmonia. Tinha lugar que se chamava Albergue da Boa Vontade. Lugar onde nós tomavamos banho, depois nos vestiam com saia branca e nos davam cama. Nós nunca havíamos dormido em cama, e tinha café de manhã e mate. Passamos uns quinze dias lá.
Ali conhecemos, do lado de fora, sujeito que trabalhava com bandeirola do trenzinho. E ele nos disse assim: porque não vão morar em Realengo, lugar muito bonito, tem casas boas(...) A casa não tinha telha, mas era uma casa. Ainda hoje nos pertence. Meu irmão mais velho é quem toma conta, fica na rua Tecoté 69. Moramos dois ou três anos. Dali fomos à Ilha do Governador, meu pai comprou uma terra.
Não aprendi a ler, mas aprendi a tocar melhor violão quando fizemos uns serviços no Ceará. A música nos entrou muito forte. A música popular naquela época era muito boa, (cantarola) " porque bebes tanto assim, rapaz? ...".
Quando chegamos no Rio, tocava muito pouquinho. Depois fiz Serviço Militar, passei três anos e aprendi a tocar melhor. E consegui violão de quatro cordas Del Vecchio, violão tenor, sim.
Aprendi a tocar bastante bem. E saí do Exército porque um sargento começou a implicar comigo, porque eu tocava nos aposentos que pertencem a cabos e sargentos. Eu era cozinheiro, porque eu gostava de comer e de café. O sargento começou a pedir alguma música que eu não entendia. "Se você não toca, pára com essa charanga", disse e veio para mim como se fosse bater. "Eu vou lhe enfiar a mão". Eu disse: se enfiar a mão na minha cara, eu vou enfiar também. Apartaram e fui preso por sete dias.
Então comecei a tocar um pouco pelas ruas. Tinha 16 anos, mas não tinha tamanho. Não tenho mais que 1,70. Era o mais alto da tribo. Aliás, o mais alto tinha dois metros, era o tio Ta. O nome era Ipeutá. Mas o resto era tudo baixinho.
No Rio, começamos a tocar na rua. E nos jogavam algum dinheiro e a gente ia vivendo bem, mas dava muita vergonha porque éramos grandes, já.
Então fomos dar uma prova numa estação de rádio. Fomos falar com diretor da Cruzeiro do Sul, o Paulo Roberto. Perguntou: vocês são de que tribo? Cantávamos de uma maneira estranha.
A gente não dizia que era índio, porque as pessoas tinham medo. Ele insistia: mas vocês têm cara de índio, a linguagem de vocês é muito estranha.
Resolveu dar um contrato por uma semana e um conto de réis, que era muito dinheiro para nós. Na rua, ganhávamos dois mil réis no máximo . Aï contamos que nós éramos Tabajara. Aí disse que ia anunciar a gente como Índios Tabajaras. E o povo gostou.
Ficamos outra semana. Dali fomos trabalhar na Casa do Caboclo, que tinha shows, tinha o Apolo Correia, ator. Nosso trabalho era entrar na cena com violão, cantar coisa indígena, a gente saía e entrava de novo, o povo ria muito.
Estreamos no Cassino, mas tocamos muito bem, cantamos bem. Nenhum dos outros nossos irmãos gostou de música, porque demanda inteligência, determinação, insistir, insistir, repetindo, repetindo.
Aparecemos em revista. Mas o dinheiro que cobrava era muito pouco. Chegamos a ir a São Paulo e Buenos Aires, com um espanhol que se chamava José Montoja, que falou com um dos diretores da rádio El Mundo: "Jo tengo aqui dois artistas índios que são um sucesso estrondoso". Diretor de rádio gosta dessa história de sucesso estrondoso.
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