sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

UM CADÁVER NADA ADIADO


“A fisioterapeuta aproximou-se da cama, afastou o lençol e apoderou-se da perna esquerda de mamãe: a camisola aberta revelava com indiferença seu ventre flácido, recoberto de minúsculas rugas, e o púbis glabro. ‘Já não tenho pudor nenhum’, disse ela num tom surpreendido. ‘Tem toda a razão’, respondi. Mas desviei-me da cama e fui absorver-me na contemplação do jardim. Ver o sexo de minha mãe: isso me chocara. Para mim, não havia corpo que existisse menos do que o dela; mas, ainda, não existia. Criança, amara-o; adolescente, inspirara-me uma repulsa inquieta: isso é clássico; e achava norma que tivesse conservado esse duplo caráter, repugnante e sagrado: um tabu. Mesmo assim, surpreendia-me com a violência de meu desagrado. O consentimento despreocupado de minha mãe agravava-o; ela renunciava às interdições, às ordens que a havia oprimido durante a vida inteira; e não podia deixar de aprová-la. Só que esse corpo, subitamente reduzido por essa renúncia a não ser mais do que um corpo, já não diferia muito de um despojo: pobre carcaça sem defesa, apalpada, manipulada por mãos profissionais, onde a vida parecia prolongar-se apenas por uma inércia estúpida. Para mim, minha mãe existira sempre e eu jamais pensara seriamente que a veria desaparecer um dia, bem cedo. O seu fim, tal como o seu nascimento, situava-se num tempo mítico. Quando dizia de mim para mim: ela está na idade de morrer, eram palavras vazias, como tantas outras. Pela primeira vez, no entanto, eu percebia nela um cadáver adiado.”



Simone de Beauvoir (1908-2008), "Wanted: Uma Morte Muito Suave"

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