"Agora estava treinando para não levar nada a sério. O homem pode cometer muitos erros pequenos, e não tem importância. Mas se os erros são grandes e pesam em sua vida, a única coisa que ele pode fazer é não se levar a sério. Só assim evita sofrer. O sofrimento prolongado pode ser mortal."
Há muito me apetece o dilema que criei quando preciso definir em mim o que posso chamar de ficção ou realidade. Às vezes encaro um fato real como dotado de grande caráter fictício, ou o caminho inverso também me surge com frequência. E nesta leva defini com esta obra espetacular de Gutiérrez que em muita das vezes a ficção se mostra mais real do que a própria realidade.
E com o cenário da capital cubana assolado por mais de quatro décadas de ditadura comunista é que Gutiérrez, em sua vida errática movida a muito rum e desordens, lambe os beiços e se delicia numa geleia que mistura ironia, lirismo, brutalidade, sensualidade escancarada, cinismo, sexo - sempre, diga-se de passagem - e nenhum sentimento de culpa ou remorso ou possibilidade de fazer concessões a quem quer que seja. Os descaminhos criados pela ausência de conforto oferecida pelo mundo comunista fazem brotar indivíduos alucinados e transformados em subprodutos humanos - o que me fez lembrar do estilo literário brasileiro denominado "naturalismo" e o seu "cortiço" definitivo.
E tudo isto feito por um ex-cortador de cana que critica a realidade de Cuba sem ser anticomunista e sem querer abandonar Havana. Apaixonado pela cidade, Gutiérrez nos saúda com um brilho literário que assusta os mais desavisados, que vivem no saudosismo e não se permitem ver uma obra nascida à beira do século XXI como um marco da literatura mundial. E eu que restringia o meu conhecimento literário cubano a Cabrera Infante e Alejo Carpentier, ponho Gutierrez muito acima desses artistas, a partir de uma definição dele próprio:
"A arte só serve de alguma coisa se é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero; só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos a nossa consciência."
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