terça-feira, 7 de abril de 2009

IV. O PRIMEIRO HOMEM

"Uma criança não é ninguém por si mesma, são seus pais que a representam. É por meio deles que ela se define, que é definida aos olhos do mundo. É através deles que ela se sente verdadeiramente julgada, ou seja, julgada sem apelação, e era esse julgamento feito pelo mundo que Jacques tinha acabado de descobrir, e com ele seu próprio julgamento sobre aquele coração mau que tinha."




As particularidades que permeiam este romance devem determinar a forma como iremos vê-lo: (1) leremos o manuscrito encontrado junto ao corpo de Camus como um texto definitivo, embora incompleto; (2) como um projeto que deveria sofrer (ou sofreu!?) modificações profundas ao longo do tempo; (3) ou ainda como um manuscrito que poderia ter sido abandonado por seu autor ?

Camus morreu em 1960 ao sofrer um acidente automobilístico. Em sua maleta estava contido o manuscrito do romance "O Primeiro Homem". Possivelmente por ironia do destino, ele também escrevera que tal romance deveria terminar inacabado.

A obra aposta no tom memorialístico, e desvenda um Camus autobiográfico ao extremo: a infância pobre em Argel, a morte do pai durante a Primeira Guerra, os conflitos com a mãe iletrada, o contato com pessoas de outras culturas, feitas no ensino ginasial e na faculdade de filosofia em Argel, a paixão pelo futebol, entre outros fatos, no qual Jacques Cormery, protagonista da obra, aparece como pura figuração do escritor argelino. Aspectos estes que circularam por outras obras camusianas, entre estas "O Homem Revoltado" e o "Mito de Sísifo".


Mas o que há de original nesta obra? Primeiro, o mergulho no mundo solar da Argélia, contado a partir das impressões de um Jacques preso a um passado representado pelo pai, morto à idade inferior a que tem agora, e principalmente os vestígios etnográficos de uma civilização marcada pela guerra de independência da Argélia, cujo auge coincide com a morte de Camus. A ênfase na noção de "impossiblidade da memória" também foi bem descrita no livro, dando provas da origem proletária do autor: "A memória dos pobres já é por natureza menos alimentada que a dos ricos,tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor."


É neste clima que o "primeiro" Camus, ou seja, a gênese deste autor pode revelar-se na melhor medida, e nos obriga a remeter a tal obra ou vida a partir de seus próprios fragmentos: "reivindicar obstinadamente a obscuridade e o anonimato(...) caminhando na noite dos anos nessa terra de esquecimento onde cada um era o primeiro homem"





8 comentários:

Anônimo disse...

Sim, a publicação póstuma desse livro é um presente para nós, leitores e admiradores do grande talento literário que foi o Camus. Mas agora eu levanto a seguinte bola: será que o homem ficaria satisfeito em ver a sua derradeira obra ser publicada de maneira incompleta? O texto que lemos possivelmente não seria o texto final (um autor sempre altera muito a redação ao longo do trabalho, por vezes suprimindo frases, personagens e até mesmo capítulos inteiros ou, ao término da escrita, não raro muda completamente o título da obra). Será que o acaso ajudou ou prejudicou o resultado final?

Pablo Lima disse...

caríssima, FELIZMENTE os escritores que já se foram - pelo menos em corpo - não possuem este direito. Não compete a eles decidirem sobre a publicação de suas obras, adaptadas ou não à realidade da época da publicação. Coube mesmo, neste caso, à viúva Catherine a sábia decisão de tornar isto público.

Todo artista está sujeito a sofrer este tipo de "atentado". Vale lembrar que o mesmo se deu com outra obra muito mais famosa: "O Processo" foi escrito em 1914 e se dependesse de Kafka, as cinzas do manuscrito teriam se misturado à bela paisagem de Praga, cidade natal do autor.

Antes de ser vitimado fatalmente pela tuberculose em 1924, Kafka entregou os inéditos do livro ao seu melhor amigo e pediu-lhe que não publicasse nada. Felizmente o "amigo da onça" nao atendeu ao pedido do maior expoente da literatura tcheca em todos os tempos. E francamente, caso eu não tivesse desfolhado "O Processo", a minha vida teria sido bem pior do que a de qualquer personagem kafkiano.

Tentando manter o nível, levanto outra bola, esta na saída de rede de bloqueio russo (quá): não seriam as publicações de obras de autores já mortos semelhantes a adaptações de obras literárias a outros gêneros artísticos??

Será que Euclides da Cunha também estaria satisfeito com a adaptação de "Os Sertões" para o teatro?

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

Concordo com você, Pablito, como eu disse "a publicação póstuma é um presente para nós". Só acho que esse, digamos, "entusiasmo" pela publicação indiscriminada de todo e qualquer texto postumamente deve ser encarado com mais cuidado. Muitas vezes, o autor tinha toda a razão em não querer publicar o que escreveu, uma vez que, por mais genial que seja, o artista sempre tem lá os seus dias pouco inspirados. E aí entra muito o interesse das editoras e dos herdeiros em lucrar com aquilo que talvez não acrescente nada à obra do escritor. Não estou dizendo que é este o caso do livro do Camus e muito menos o do Kafka (principalmente!). Mas que esse pensamento meramente voltado para o lucro é uma tendência cada vez mais presente no mundo editorial, isso é...

Quanto à sua comparação com a adaptação a outros gêneros artísticos, bem, nesse caso eu já acho que é bem diferente. Quando se adapta um livro para o teatro ou para o cinema ou para qualquer outra forma de manifestação artística, não podemos mais considerar que a autoria da obra seja unicamente do escritor. Aliás, acho até que a autoria passa a ser muito mais da equipe como um todo, porque todos têm um trabalho de criação próprio: o diretor, os atores, o roteirista que adapta o livro, o diretor de fotografia, o figurinista... Já não é mais a obra do autor do livro, mas uma nova e diferente obra.

Pablo Lima disse...

opa, problemas diferentes no mesmo parágrafo! (:

interessa-me muito saber o que se passa nos dias de pouca inspiração dos ícones da literatura - apesar de achar q gente da estirpe de kafka, camus, rosa, machado, baudelaire, sartre, tolstói, mann e muitos outros nunca sofreram deste mal.

em "o primeiro homem" foram publicadas todas as anotações e observações que o camus fez,ou seja, todo o rascunho da obra. o que deu outra cara ao livro, nos deixou mais íntimos com o autor e deu outra densidade à leitura (no melhor estilo caetanesco q diz q "de perto ninguém é normal).

sobre os interesses do mercado editorial, concordo em gênero e número! boa parte dos que possuem interesse na publicação de algo não possuem comprometimento com a qualidade/importância da obra.


tmb acho que a releitura de uma obra literária adaptada a outro gênero deva ser livre. mas como o assunto inicial está ligado à insatisfação que o autor apresentaria ao "ver sua derradeira obra ser publicada de maneira incompleta", isto nao seria semelhante a visualizá-la adaptada a outro gênero?

Anônimo disse...

Pablito, dizer que grandes nomes da Literatura nunca tiveram seus dias menos inspirados é o mesmo que dizer que craques como Garrincha e Pelé nunca entraram e saíram de campo sem marcar um gol. Acontece que muitos escritores (mais precavidos) simplesmente destróem os textos que não publicam. É o caso comprovado, por exemplo, de Clarice Lispector. Os únicos textos póstumos que a editora conseguiu arrancar dela foram aqueles conselhos sentimentais para moças ditas "de família" publicados no jornal. Trabalho que ela fazia meramente para se sustentar.

Mas continuo achando que a comparação com a adaptação de livros para outros gêneros não cabe aqui. Claro, a grande maioria dos escritores fica insatisfeita com os resultados! E isso independe do trabalho feito pelos outros. Um livro pode ser maravilhosamente adaptado para o cinema mas, pode apostar, o seu autor vai dizer que ficou um lixo. Porque aí entra o ego, o orgulho e, principalmente, o apego do artista em relação à sua própria obra. É complicado compreender que aquilo que está ali não é mais de sua autoria e sim uma "adaptação". Nesse caso, o "inspirado em" já redime o autor de qualquer resultado desastroso. Não gostou do filme ou da peça? Bem, então leia o livro, que está lá intacto!
Isso é muito diferente de ter um livro com textos renegados publicado com o seu nome na capa. Não há como fugir, a autoria é unicamente SUA.

Pablo Lima disse...

vale lembrar que nas 66 vezes em que garrincha e pelé atuaram juntos pela seleção brasileira, o escrete canarinho não perdeu uma só partida...

Agnes R. disse...

Bate-bola bom este, hein? Nem me lembrava mais, rs...
E só li o seu último comentário agora! Bem, eu disse em "não marcar gols" e não "perder a partida". Quem vence ou perde a partida é o time, a equipe como um todo (com exceção do Maradona na Copa de 1986, claro, rsrs).