sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

FEBRES CINELITERÁRIAS

Direto da nossa especialíssima correspondente internacional Agnes Rissardo - que editou o texto e deixou o título do post ao meu encargo - para o nosso também ilustríssimo periódico. Excepcional ensaio de José Carlos Avellar que trata da difícil, complicada e quase sempre prazerosa adaptação de livros para o cinema.



Obrigado, caríssima Hepburn. Imagino que em breve você fará uma ilustre tabelinha com a Audrey "original" em mais um delírio cineliterário. Estou certo?





"Um diretor de cinema não apenas lê um livro como se o texto fosse a adaptação literária de um filme, mais: lê como se ele fosse a adaptação literária de um filme que ele já sonhou mas ainda não realizou. No texto não encontra uma história para contar ou um modo de contar: reencontra. No livro vê organizada a idéia do filme que tinha na cabeça como se ele e o escritor, contaminados pelo mesmo vírus, tivessem tido o mesmo delírio provocado pela mesma febre.

Talvez se possa dizer que de um modo geral, não só no cinema, um artista pode reencontrar o que imaginou já realizado numa outra obra, irmã gêmea da que ele pensou, assim como aconteceu com Thomas Mann no processo de composição de Doutor Fausto. Talvez se possa dizer que o cinema no diálogo que mantém com a literatura apenas torna mais evidente este componente febril da criação artística.

Lendo sobre música para escrever a história de Adrian Leverkühn, (...) lendo entre outros Virgil Thomson, (...) e, especialmente, Theodor Adorno sobre Schönberg, Mann reencontrou reflexões que eram suas, mas que ainda não formulara: “Foi com familiaridade que encontrei essas reflexões no manuscrito de Adorno como se fossem minhas, e – que palavras devo usar? – a paz de espírito com a qual as coloquei, alteradas, na boca do meu gago pode ser justificada pelo seguinte: muitas vezes, após uma longa germinação, semeamos ao vento idéias que um dia retornam, marcadas por outras mãos e situadas em outros contextos, trazendo-nos a lembrança de nós próprios e de nossas particularidades.” Numa anotação feita enquanto se preparava para escrever o capítulo 34 do Doutor Fausto, Mann (...) conclui: “A febre de um faz avistar o que outros tenham visionado num estado igualmente febril; uma pessoa pode alcançar um arrebatamento padronizado, sem independência e por empréstimo. Considero essa idéia fascinante e digna de ser realçada, e sei bem por quê. De certo modo, ela está de acordo com minha própria tendência – e percebi que não se trata de uma mera inclinação pessoal – a considerar a vida toda como um produto cultural na forma de clichês míticos e a preferir a citação à invenção autônoma. O Fausto traz alguns traços disso.” (...)

Talvez se possa dizer que Mann foi contaminado pela mesma febre que levou Oswald de Andrade a formular uma de suas leis antropofágicas – só me interessa o que não é meu; e dizer que Doutor Fausto resulta de um processo de criação equivalente àquele que ocorre na adaptação de uma obra literária para o cinema. A relação que se estabelece entre o romance de Mann, a crítica de Adorno e a música de Schönberg é aquela mesma que existe entre um filme e o livro que o inspira. O cinema vai à literatura tal como aqui a literatura foi à música e à crítica musical para se deixar contaminar pelo estado febril que torna possível entrever (miragem? assombração? filme?) o clichê mítico que deseja citar.


AVELLAR, José Carlos. O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil.

3 comentários:

Agnes R. disse...

Recomendo o livro inteiro do José Carlos Avellar, que é excelente!! E, sim, em breve enviarei novas contribuições. Mas desta vez sobre literatura e.... música!
Beijo grande!!!

Pablo Lima disse...

legal!

q tal literatura e tevê?

Pablo Lima disse...
Este comentário foi removido pelo autor.