terça-feira, 29 de dezembro de 2009

felicidade ENCURRALADA



(...)Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos nem fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive a impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldogue fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo como Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.

- Caras, vocês armaram essa - eu disse.- Não - rebateu Chuck -, a culpa é do gato. Ele veio até aqui. Deixe que ele se vire agora pra escapar.

- Odeio vocês, seus desgraçados - eu disse.

Barney vai matar o gato - disse Gene.- Barney vai fazer picadinho do bichano - disse Eddie.- Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar tudo estará encerrado.

Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinha olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pêlos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de lhe dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele me arrancaria a perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.O cachorro avançou lentamente.

Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto.
Onde tinham se enfiado agora?

Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas eu não tinha forças. Tinha medo de que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.

- Chuck - eu disse -, deixe o gato ir, por favor. Chame o seu cachorro.
Chuck não respondeu. Continuou apenas observando. Então disse:

- Vai, Barney, pegue ele! Pegue o gato! Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bichano se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.

- Pegue ele, Barney - disse Chuck novamente.
- Cale a boca, maldito! - gritei para ele.- Não fale comigo desse jeito - retrucou. Barney começava a avançar novamente.
- Caras, vocês armaram tudo isso aqui - eu disse. Ouvi um leve ruído atrás de nós e voltei a cabeça. Vi o velho senhor Gibson a nos observar de trás da janela de seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos.

O velho senhor Gibson era um dos poucos homens na vizinhança que tinha um emprego, mas ainda assim ele precisava ver o gato ser morto. Gibson era como Chuck, Eddie e Gene.Havia muitos deles.O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse escapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a Humanidade inteira.

Dei meia-volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chegando à calçada. Caminhei em direção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente à sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.

- Onde você estava? - ele perguntou. Não respondi.
- Já pra dentro - ele disse.
-
E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei algo para que você realmente sinta o que é infelicidade!

Trechos de Misto-quente, de Charles Bukowski.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

LENTO ESBOROAR







dentro da caixa escura, nenhuma lua
mas a voz que chispas, acentua
no ar, a espessura quase feltro
no ar, que antes dela era neutro
como o sono sem sonhos,
ou preso no casulo de um pesadelo
(ao encontro dos dedos se rompe
sobre o nada, que a luz interrompe)


chega a voz, e recolhe e espalha
cada fragmento, "migalha de luz"
lento esboroar, de quem já fui, na tarde


a voz vara persianas,
cobre as dálias,
vai de encontro à lixa das cigarras."

"Voz", Cláudia Roquette-Pinto.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

espírito natalino entre muros



Dois cidadãos acenam à família do outro lado do muro de Berlim no Natal de 1961.
Por Leon Herschtritt

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

infelicidade inspiradora
























Por José Castello, publicado na edição de novembro de 2009 da Revista Bravo.

Clarice Lispector - Infelicidade Inspiradora

Clarice Lispector amou o romancista Lúcio Cardoso, homossexual, e o cronista Paulo Mendes Campos, que era casado. As paixões impossíveis alimentaram sua literatura - e ela não foi a única escritora a se nutrir do fracasso amoroso

A paixão alimenta a literatura ou a enfraquece? Amar leva a escrever ou a calar? Clarice - A Vida de Clarice Lispector, biografia do jornalista norte-americano Benjamin Moser - que chega neste mês ao Brasil com o status de ser a mais completa sobre a autora de Laços de Família e Felicidade Clandestina —, sugere que, mesmo quando o amor é impossível, ele estimula a escrita. Mesmo fracassado, um amor pode ajudar a escrever.

Casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente, Clarice nunca escondeu que se sentia sufocada pela vida conjugal. "Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente", escreveu em uma carta datada de 1944. Se o casamento com Maury "deu certo" - gerou dois filhos e perdurou por 16 anos - a paixão pelo romancista mineiro Lúcio Cardoso foi muito mais importante para sua escrita, mesmo "dando errado".

Quando se conheceram, em 1940, Clarice tinha 20 anos, e Lúcio - brilhante e sedutor -, 28. Mas era um amor impossível: Lúcio era um homossexual assumido. Havia, porém, lembra Moser, um segundo impedimento: os dois eram "parecidos demais". Mesmo assim, especula Moser, foi esse amor não correspondido que levou Clarice a cultivar a solidão - condição essencial para a escrita. Mais que isso: foi o fracasso no amor que a empurrou para a literatura. Por meio de Lúcio, ela passou a frequentar as rodas literárias do "grupo introspectivo", que se reunia no Bar Recreio, no Rio de Janeiro. Chegou, assim, à poesia metafísica de Augusto Frederico Schmidt e encontrou sua ascendência "mística" em Cornélio Penna e Octavio de Faria, essenciais para a sua obra. Foi Lúcio Cardoso quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943). Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotações dispersas, que ela tomava às tontas e pareciam incoerentes, eram, na verdade, o seu método.

Nos anos 60, Clarice Lispector se aproximou de outro escritor: o cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. Desde 1959 estava separada de Maury, com quem tinha morado na Itália, Suíça e Estados Unidos. Em junho daquele ano, regressou com os dois filhos ao Brasil, apostando novamente na solidão. Em 1962, porém, envolveu-se com Paulo.

Diz Moser, com astúcia, que ele foi uma "versão heterossexual" de Lúcio Cardoso. Ambos eram mineiros, católicos, talentosos e sedutores. Eram também perdulários, boêmios e alcoólatras. Como Lúcio, Paulo exerceu uma forte influência intelectual sobre Clarice. Mas era outro amor impossível: ele era casado. Mesmo assim os dois viveram uma paixão secreta. Vínculos invisíveis os ligavam. O jornalista Ivan Lessa assim resumiu: "Em matéria de neurose, nasceram um para o outro". Clarice tentava ser discreta, mas não continha a ansiedade. Intimado pela mulher, Paulo partiu com a família para Londres. Moser avalia que o fim do romance isolou Clarice do meio literário e, de um modo mais geral, do "mundo adulto", com o qual ela teve sempre laços muito frágeis. Ela o amou até o fim de seus dias.

TENSÃO E LOUCURA

É sempre ambígua e tensa a relação amorosa entre escritores. Influenciada pela filosofia de Jean-Paul Sartre, com quem viveu uma relação heterodoxa, Simone de Beauvoir acreditava que todo amor é impossível, mas que era possível fazer muito de seus destroços. Só porque via o amor como uma experiência desastrosa, Simone conseguiu amar Sartre: não moravam juntos, não tiveram filhos e namoravam outras pessoas. Ele mais que ela. "Não somos a mesma pessoa, mas temos as mesmas recordações", Simone argumentava. Tinha certeza de que, escrevendo, ajudava Sartre a entender quem ele era.

Às vezes, como mostra a relação dos poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, a mistura de literatura e paixão resvala na loucura. Quando se aproximaram, Verlaine, um homem casado, tinha 26 anos, e Rimbaud era um rapazote de 17. Correspondiam-se. Apaixonaram-se. Verlaine se embriagou com as ideias de Rimbaud, que combatia os parnasianos, a família e a pátria. Na busca do "desregramento dos sentidos", abusaram do absinto e do haxixe. Mas brigavam sempre. Verlaine se arrependia sempre. "Volte, volte, amigo. Juro que serei bom", escreveu em carta de 1873. Numa dessas brigas, Verlaine feriu Rimbaud com um tiro no punho. Passou dois anos na prisão. A paixão os destruiu, mas ampliou os limites de sua poesia.

A mistura de amor e literatura tomou uma forma quase perfeita na figura da escritora Lou Andreas-Salomé. Brilhante e sensual, ela "devorou" o espírito de três grandes homens: o poeta Rainer Maria Rilke, o filósofo Friedrich Nietzsche e o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. Foram amores distintos - que ela, friamente, chamava de "experiências". Com Rilke, ela viveu uma paixão intensa que esbarrou na fraqueza do poeta. Aos poucos, Lou entendeu que a poesia era, para ele, o avesso do desespero. Ficou com o melhor - o poeta - e se afastou do homem. Pragmática, escreveu: "Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la".

Mesmo quando bordeja o desespero, a paixão sustenta a literatura. Casada em 1912 com o escritor Leopold Woolf, nem o amor salvou Virginia Woolf. Na base da paixão de Leopold por Virginia estava não só o fascínio por sua escrita, mas o desejo de salvá-la da loucura - que enfim, no ano de 1941, levou-a a afogar-se no rio Ouse. A admiração literária e o amor não garantiram a felicidade. Mas a fizeram escrever.

Também é impossível não pensar no poeta britânico Ted Hughes, cujo amor foi insuficiente para salvar a mulher, a norte-americana Sylvia Plath, do suicídio - que ela enfim cometeu em 1963. Um ano antes, cansado, Hughes a deixou. Tantas e tantas vezes a paixão não basta. Mas a importância de Hughes na poesia de Sylvia é indiscutível.

Mesmo quando se torna asfixiante, a paixão não anula a escrita. O caso entre os americanos F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre é uma prova disso. Em carta de 1920, Zelda escreve ao amado: "Eu jamais poderia passar sem você - ainda que me deixasse morrer de fome e me espancasse". A presença esmagadora de Scott não a impediu de escrever um belo romance como "Esta Valsa É Minha", de fundo autobiográfico. Já em sua vida pessoal, o amor não lhe bastou. Em 1930, demonstrando a insuficiência da paixão para sustentar uma vida, Zelda foi internada como louca.

Nem todos, como o argentino Adolfo Bioy Casares, tiveram a sorte de transformar a parceria amorosa - no caso, o casamento com a escritora Silvina Ocampo - em fecunda parceira literária. Juntos, escreveram Quem Ama, Odeia, novela simples, mas inspirada, que resume um pouco não só os paradoxos da paixão, mas as relações tensas, porém produtivas, entre amor e literatura.

Adolfo e Silvina são, provavelmente, uma exceção. Mesmo quando fracassa, porém, um amor pode salvar um escritor.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

digo, repito E REITERO QUE...




























DOIS MOTIVOS me levaram às palavras e imagens dessa postagem, e ambos se relacionam com a lista publicada no Jornal O Globo, que indicou a seu gosto os dez maiores filmes brasileiros da década. Logo, digo, repito e reiteiro que:
  • CIDADE DE DEUS não é o primeiro colocado nem aqui nem no paraíso!! A falsa moralidade ali representada, com estética videoclipesca, em nada representa a realidade do livro, do país e muito pouco do que acontece nas favelas, e serve apenas para que o burgo tupiniquim ehcha ao copo de uísque e saia do cinema achando que fez a sua parte!

  • Lavoura ARCAICA ficar em nono lugar em lista de dez mais é papo pra cego aderaldo nenhum botar defeito. Colocando as coisas em ordem, pus oito em ordem, na ordem de vários maravilhosos exemplos. A saber...


1- Lavoura Arcaica - ninguém ousou adaptar com tanta maestria um livro para as telonas como o fez Luiz Fernando Carvalho com este longa. Genial, estupendo, sufocante são adjetivos que caem sob medida ao filme: Selton Mello, Simone Spoladore, Juliana Carneiro da Cunha, Raul Cortez, uma constelação que serve como leitmotiv para o texto de Raduan Nassar fluir com extrema concisão. Resenhei o filme aqui neste espaço: http://umacapitalentrerioemanaus.blogspot.com/2007/07/7lavoura-arcaica.html

2- Abril despedaçado - Graças ao talento de Walter Salles, revi todos os meus (pre)conceitos sobre a questão das rixas familiares no nordeste brasileiro. José Dumont é um gênio, Rodrigo Santoro, quase. Resenha em ://umacapitalentrerioemanaus.blogspot.com/2008/06/famlias-em-pedaos.html

3- Central do BRASIL - marco da retomada do cinema nacional, Central expõe uma das mais claras feridas da sociedade brasileira ao focalizar a criança sem amparo como tema. Poucas vezes o dilema infantil brasileiro foi tão bem retratado nas telas, tudo sob o olhar poético do diretor Walter Salles, que usa trilha sonora impecável e atores adequados aos personagens. Quase um
revival de "Pixote", mas muito acima deste em qualidade.
























4- Tropa de Elite - Principal "substituto" de Cidade de Deus no tocante ao real retrato de violência no Rio de Janeiro que envolve policiais, favelados, traficantes e estudantes de classe alta, o filme triunfa por não fazer concessões a qualquer dos lados e por apostar na falta de soluções a médio prazo para um problema que determina novos conceitos morais, éticos e de conduta aos cidadãos da cidade mais do que partida e estraçalhada.

5- O Invasor - excelente thriller urbano dirigido pelo novato Beto Brant, cujo foco está na teia de relações criadas entre sócios que atuam em uma mesma empresa.O título "enobrece" e muito a obra por deixar no ar quem realmente vesta a carapuça de invasor na obra. Resenha de minha autoria em

6- Casa de Areia – o esplendor das imagens, uma das principais características do diretorAndrucha Waddington, é o ponto alto do filme. Ele trata com maestria os conflitos da protagonista, que chega em um lugar inóspito no Maranhão à procura de posses do marido. O inconformismo com o destino é o centro da trama, que faz os personagens irem do desespero à plenitude em vários momentos. Destaque para a fotografia e para as excelentes Fernandas Torres & Montenegro, que dispensam apresentações.

7- Narradores de JAVÉ -Comédia delirante e saborosa sobre um lugarejo denominado vale do javé, que está em vias de sumir do mapa por conta da construção de uma represa.
A obra lida com os dilemas dos habitantes de JAVÉ com sensibilidade e humor, tendo como figura central o mordaz Antonio Biá, interpretado pelo excepcional José Dumont –O MAIOR ATOR brasileiro com sobras e há tempos.

8- Amarelo Manga - Mais um exemplo de como investir nas entranhas do país pode render obras magníficas. Cláudio Assis mostra em seu primeiro longa um emaranhado de situações tidas como sub-humanas para muitos e que, no fundo, são corriqueiras para a maioria dos que vivem à margem dos padrões definidos como viáveis pela sociedade. Um país marcado pela descrença nos valores morais e pela "podre ambição" a todo custo, podridão essa reafirmada pela cor amarelada dita no título da obra.Destaque para a força dos diálogos e para as atuações de Mateus Nachtergaele
e Chico Diaz.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

HIV/AIDS CAMPAIGN 2009

Prejudice is The Real Fault, Simone Giara, Itália



Use Them No Matter What They Say, Kresimir Grancaric, Croácia

Be sincere and faithful, Leonie Mossel, Suriname


BELIEVE, Roberto Tjon, Suriname


Use Your Head, Takanori Matsumoto, Japão



Persist, Maurizio Casale, Itália

Illusion, Ágata Ventura, Portugal



CONE-DOM, Handoko Tjung, Indonésia

domingo, 13 de dezembro de 2009

MEMORIAM IN symphonía



Luiz Gonzaga do Nascimento, nascido em 13 de dezembro de 1912 na fazenda Caiçara, no sopé da Serra de Araripe, na zona rural de Exu, sertão de Pernambuco.


quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

idiossincrasias com veneno


Trechos de "Uma cantora que não quer ser ‘cool’", de Joaquim Ferreira dos Santos, publicado em 7 de dezembro de 2009 em "O Globo".

"O novo disco da Alcione, “Acesa”, é tudo que já tentei dizer outras vezes e fracassei porque, vejo agora, faltou ao verbo o gostoso veneno da voz da Marrom. Enfim, uma mulher que sabe quem manda nesta casa. Ela. A loba. Uma cantora que não quer ser cool como todas as outras que neste momento estão mostrando um clássico de Assis Valente na Lapa. Pelo contrário. Uma cantora que é capaz até mesmo de ficar ofendida se for elogiada de cool por alguma faixa mais suave.

(...) O problema é que as novas cantoras, por mais afinadas que sejam, por mais bonitinhas que fotografem na capa, só pensam nisso. Só pensam em falar baixinho, sussurrar o que não tenha a ver com as suas vidas e principalmente não contrariar quem quer que seja com idiossincrasias fora do tom. Não é só a bebida. Cantam com moderação.

Elas refletem a falta de vísceras que está na música cheia de pudor, no teatro cheio de bom gosto e no jornalismo sem suor. Um país chato. Todos querem sê-lo assim, pronominais, limpinhos, contemporâneos e thai. Todos querem o elogio pelo minimalismo wall-paper que viram ontem na revista internacional e pela capacidade de se comportar dentro dos padrões ditados há dezenas de anos pelos controladores de som da bossa nova. Não é o caso de Alcione e sua voz de trompete garantindo, em tom maior, que há outras maneiras de cantar, de se levar a vida. Enfim, uma cantora que sabe o que interessa. Ele.

Alcione fala de tudo que as outras, com medo do que a Marisa Monte vai pensar, abafam. O CD de Alcione é feito de cheiros exalados pelo amor cheio de sacanagem de um casal que se ama, letras desenhadas pelas ameaças sentimentais de quando o pau quebra entre o casal que deixou de se amar. A MPB sofre de um medo generalizado de dar bandeira e dizer o que acontece toda hora a todos lá fora. Fracassei. Menti. Traí. Há um medo sanitário em gritar o tesão e, o horror dos descolados, parecer ligado demais em coisas antigas.

“Vem matar o meu desejo, meu corpo te chama”, diz a Marrom, sem pensar no que a Maria Gadú vai achar desse clamor musical.


O resto é o que está por aí na Lapa branquinha dos sambinhas universitários, na praia sem o coco verde dos higienizadores do bom gosto, no botequim sem a serragem ao pé do balcão, no lead e no sublead da reportagem feita pelo telefone. Dizem que as operadoras de telefonia patrocinam o país. Acho que é o Pinho-Sol.

Alcione, a melhor cantora brasileira de muitos dezembros, é de outra freguesia. Mora num bairro distante, de ruas sujas pela passagem do tempo, em que as pessoas se mexem pelo desejo de serem felizes e não antenadas. Aqui, a Comlurb não recolhe o lixo sentimental das histórias que se acumulam nos corações. Elas viram patrimônio, ruga, gritos na madrugada e samba bom. O padrão de qualidade de Alcione é o da emoção vivida, a vida das mulheres adultas que ousam dizer seu nome. Já pintaram, bordaram. Não têm vergonha de vir a público, segurar o microfone e encher a boca para dizer com toda franqueza. O que vale mesmo é a “pegada” do distinto que lhe vai na cama. Aqui não se usa lençol de 500 fios da Alfaia. Nada de racionalismo grifado pela Maria Bonita, nem o sossego-tarja-preta dessas moças que se alimentam existencialmente com o tédio de um kone, dois kebabs e 28 kisses diferentes por noite, proteínas ralas do jogo rápido e das relações sem compromisso.

(...)Por isso, contra o tédio cantante, a sensaboria reinante, use Alcione. Sinta “o gosto do desejo”, deixe que “o corpo se inflame”, permita “a mão atrevida” e provoque no outro o que lhe “acenda a imaginação”. Chega de sussurro e som de besouro ímã nas letras das canções. Enfim, uma cantora que você sabe do que ela está falando. A vida, o amor e a arte só têm graça se puderem ser de outro jeito".

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

sábado, 5 de dezembro de 2009

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

no princípio era o texto 17 - estradas ADENTRO

"A estrada 66 é a rota principal das populações em êxodo. A 66 é o caminho de um povo em fuga, a estrada dos refugiados das terras da poeira e do pavor, do trovejar dos tractores, dos proprietários assustados com a invasão lenta do deserto pelas bandas do norte e com os ventos que vêm ululando aos remoinhos do lado do Texas, com as inundações que não traziam benefícios às terras e ainda acabavam com o pouco de bom que ainda possuíam. De tudo isso os homens fugiam e encontravam-se na estrada 66, vindos dos caminhos tributários e das estradas sulcadas de calhas e de marcas fundas de rodas, que cortavam todo o interior. A 66 é a estrada-mãe, a estrada do êxodo.

(...) os homens em êxodo surgiam; às vezes um carro solitário, outras uma caravana inteira. Escutando o motor. Escutando as rodas. Escutando com os ouvidos e com os olhos e ocm as mãos a roda do volante, escutando com a palma de tuas mãos as palpitações da embreagem, e escutando com os pés a palpitação da estrada.
Escutando com todos os sentidos distendidos o bater das artérias de ferro e madeira do velho calhambeque; escutando à espreita de uma mudança de tonalidade ou de ritmo –tudo isso pode significar talvez mais uma semana de atraso na viagem.

Esse matracar? Será o ventilador? Quanto falta para chegarmos à cidade próxima?"

As Vinhas da Ira, John Steinbeck (1902 - 1968)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

41. compreendo, CLARO...




Enquanto o "Globo" desapercebeu-se da notícia sobre a morte de Nato Lima, e a "Folha" o chamou de "violinista", delicio-me com mais um duo por parte dos meus tios NATO e Tenor.


sexta-feira, 27 de novembro de 2009

quatro por quatro em LONDRES



Com a zebra solta em Londres - já que dos quatro melhores sobrou apenas o MITO FEDERER - falta pouco para vermos quem encerra o ano no topo, ou seja, com o troféu da Copa do Mundo.


TUDO nas mãos de

ROGER FEDERER, DEL POTRO,
DAVIDENKO E SODERLING






quinta-feira, 26 de novembro de 2009

era uma vez, na serra do IBIAPABA - PARTE 1


Trechos do depoimento de Nato Lima a Luís Nassif, da Folha de São Paulo, em fevereiro de 2004.
Ver íntegra do material em http://www.lainsignia.org/2004/febrero/cul_014.htm

O índio tabajara

Natalício Moreira Lima, o solista do duo Índios Tabajaras, mora em Nova York, perto do Central Park. Com seu irmão Antenor foi sucesso internacional nos anos 60 e 70. Em 1963, sua gravação da "Maria Elena" superou 1,5 milhão de discos vendidos, desbancando os Beatles na lista dos mais vendidos.
O depoimento a seguir foi concedido no dia 29 de janeiro, por telefone.


"Nasci na serra do Ibiapaba, entre Piauí e Ceará. Nesta serra, em 1929, existia Ubajara, cidade pequena, lugar famoso hoje. Naquela época não era. Um dia apareceu por lá uma tropa de militares, chefiada pelo tenente Hildebrando Moreira Lima.
Era muita gente e mudou nossa história. Não tínhamos cidade, éramos uma tribo mesmo, fomos criados na tribo Tabajara, morando em um terreno que não era nem Ceará nem Piauí, era uma área de litígio.


Nós fomos em três irmãos até lá, chegamos lá e começamos a comer fruta enorme, besta, que não vale nada, chamada Ingá, maior que feijão e contém espécie de algodão em volta, muito doce, muito bom.

Quando olhamos, vimos um violão, metemos a mão, fez aquele som, levamos um susto.
Levamos para tribo. Naquela época, os índios não deixavam ninguém chegar a menos de 600 metros dali. Vivíamos isolados. O violão causou transtorno na tribo. Havia outro som que escutávamos às seis da tarde, e não sabíamos o que era. Nós, pequenos, pensávamos que era violão. Era sino de cidade a uns 60 quilômetros dali, o sino de Ibiapina, assim chamada porque lá era terra completamente pelada.


Usavam muito medicina de mato. Eu gostava de comer barro e passava mal. Tinha vício daquilo e quase morri. Os curadores diziam que eu iria morrer daquilo, porque criava bicho na barriga.

O povo trouxe roupa, calças, vestidos para minha tia e minha mãe . E começamos a usar roupas. Quando fomos embora, roupa não era muito confortável. A do meu pai era muito grande.

Ficamos oito, nove dias em Fortaleza. E o camarada que nos trouxe de Sobral hospedou na casa dele. O pai ajudou a cavar um poço que chegou a dar água na casa dele.

Em casa, não havia nada que comer e nós começamos a querer plantar alguma coisa, igual o povo do sertão faz: limpa terra, bota fogo e começa a plantar feijão e milho. O foguinho apagou fácil. Fomos para casa descansar um pouco, foguinho começou a pegar fogo, pegou em toda a serra do Araripe. Às oito da noite muita gente veio ajudar para apagar o fogo. Uma meia-noite ainda era claro como o dia. Foi o fogo maior do sertão. Mais de quarenta dias, toda serra de um lado a outro.
Meu pai conseguiu escapar de lá e foi até onde nós estávamos. O coronel descobriu que fomos nós, levamos surra horrível.

Resolvemos sair por nossa conta. Minha mãe, antes de morrer, tinha o filho número15, e tivemos que deixar com gente do sertão, gente boa que nos dava comida.

Algumas vezes cantávamos com aquele violão que havíamos encontrado, mas não era tocando, era batendo, fazendo ritmo indígena. Vimos violonista tocar e passávamos o dia inteiro escutando. Chegava a hora de urinar, não sabíamos aonde mas agüentávamos escutando aqueles violonistas, que era uma coisa muito bonita.

Depois fomos caminhando pelo sertão e trocamos violão por quatro quilos de feijão. Fomos andando, passando Bahia e outras localidades até chegar ao Rio de Janeiro.

Quando chegamos ao Rio, no centro da cidade tinha lugar que se chamava Praça da Harmonia. Tinha lugar que se chamava Albergue da Boa Vontade. Lugar onde nós tomavamos banho, depois nos vestiam com saia branca e nos davam cama. Nós nunca havíamos dormido em cama, e tinha café de manhã e mate. Passamos uns quinze dias lá.


Ali conhecemos, do lado de fora, sujeito que trabalhava com bandeirola do trenzinho. E ele nos disse assim: porque não vão morar em Realengo, lugar muito bonito, tem casas boas(...) A casa não tinha telha, mas era uma casa. Ainda hoje nos pertence. Meu irmão mais velho é quem toma conta, fica na rua Tecoté 69. Moramos dois ou três anos. Dali fomos à Ilha do Governador, meu pai comprou uma terra.

Não aprendi a ler, mas aprendi a tocar melhor violão quando fizemos uns serviços no Ceará. A música nos entrou muito forte. A música popular naquela época era muito boa, (cantarola) " porque bebes tanto assim, rapaz? ...".

Quando chegamos no Rio, tocava muito pouquinho. Depois fiz Serviço Militar, passei três anos e aprendi a tocar melhor. E consegui violão de quatro cordas Del Vecchio, violão tenor, sim.
Aprendi a tocar bastante bem. E saí do Exército porque um sargento começou a implicar comigo, porque eu tocava nos aposentos que pertencem a cabos e sargentos. Eu era cozinheiro, porque eu gostava de comer e de café. O sargento começou a pedir alguma música que eu não entendia. "Se você não toca, pára com essa charanga", disse e veio para mim como se fosse bater. "Eu vou lhe enfiar a mão". Eu disse: se enfiar a mão na minha cara, eu vou enfiar também. Apartaram e fui preso por sete dias.

Então comecei a tocar um pouco pelas ruas. Tinha 16 anos, mas não tinha tamanho. Não tenho mais que 1,70. Era o mais alto da tribo. Aliás, o mais alto tinha dois metros, era o tio Ta. O nome era Ipeutá. Mas o resto era tudo baixinho.

No Rio, começamos a tocar na rua. E nos jogavam algum dinheiro e a gente ia vivendo bem, mas dava muita vergonha porque éramos grandes, já.
Então fomos dar uma prova numa estação de rádio. Fomos falar com diretor da Cruzeiro do Sul, o Paulo Roberto. Perguntou: vocês são de que tribo? Cantávamos de uma maneira estranha.

A gente não dizia que era índio, porque as pessoas tinham medo. Ele insistia: mas vocês têm cara de índio, a linguagem de vocês é muito estranha.
Resolveu dar um contrato por uma semana e um conto de réis, que era muito dinheiro para nós. Na rua, ganhávamos dois mil réis no máximo . Aï contamos que nós éramos Tabajara. Aí disse que ia anunciar a gente como Índios Tabajaras. E o povo gostou.
Ficamos outra semana. Dali fomos trabalhar na Casa do Caboclo, que tinha shows, tinha o Apolo Correia, ator. Nosso trabalho era entrar na cena com violão, cantar coisa indígena, a gente saía e entrava de novo, o povo ria muito.


Estreamos no Cassino, mas tocamos muito bem, cantamos bem. Nenhum dos outros nossos irmãos gostou de música, porque demanda inteligência, determinação, insistir, insistir, repetindo, repetindo.

Aparecemos em revista. Mas o dinheiro que cobrava era muito pouco. Chegamos a ir a São Paulo e Buenos Aires, com um espanhol que se chamava José Montoja, que falou com um dos diretores da rádio El Mundo: "Jo tengo aqui dois artistas índios que são um sucesso estrondoso". Diretor de rádio gosta dessa história de sucesso estrondoso.