quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

idiossincrasias com veneno


Trechos de "Uma cantora que não quer ser ‘cool’", de Joaquim Ferreira dos Santos, publicado em 7 de dezembro de 2009 em "O Globo".

"O novo disco da Alcione, “Acesa”, é tudo que já tentei dizer outras vezes e fracassei porque, vejo agora, faltou ao verbo o gostoso veneno da voz da Marrom. Enfim, uma mulher que sabe quem manda nesta casa. Ela. A loba. Uma cantora que não quer ser cool como todas as outras que neste momento estão mostrando um clássico de Assis Valente na Lapa. Pelo contrário. Uma cantora que é capaz até mesmo de ficar ofendida se for elogiada de cool por alguma faixa mais suave.

(...) O problema é que as novas cantoras, por mais afinadas que sejam, por mais bonitinhas que fotografem na capa, só pensam nisso. Só pensam em falar baixinho, sussurrar o que não tenha a ver com as suas vidas e principalmente não contrariar quem quer que seja com idiossincrasias fora do tom. Não é só a bebida. Cantam com moderação.

Elas refletem a falta de vísceras que está na música cheia de pudor, no teatro cheio de bom gosto e no jornalismo sem suor. Um país chato. Todos querem sê-lo assim, pronominais, limpinhos, contemporâneos e thai. Todos querem o elogio pelo minimalismo wall-paper que viram ontem na revista internacional e pela capacidade de se comportar dentro dos padrões ditados há dezenas de anos pelos controladores de som da bossa nova. Não é o caso de Alcione e sua voz de trompete garantindo, em tom maior, que há outras maneiras de cantar, de se levar a vida. Enfim, uma cantora que sabe o que interessa. Ele.

Alcione fala de tudo que as outras, com medo do que a Marisa Monte vai pensar, abafam. O CD de Alcione é feito de cheiros exalados pelo amor cheio de sacanagem de um casal que se ama, letras desenhadas pelas ameaças sentimentais de quando o pau quebra entre o casal que deixou de se amar. A MPB sofre de um medo generalizado de dar bandeira e dizer o que acontece toda hora a todos lá fora. Fracassei. Menti. Traí. Há um medo sanitário em gritar o tesão e, o horror dos descolados, parecer ligado demais em coisas antigas.

“Vem matar o meu desejo, meu corpo te chama”, diz a Marrom, sem pensar no que a Maria Gadú vai achar desse clamor musical.


O resto é o que está por aí na Lapa branquinha dos sambinhas universitários, na praia sem o coco verde dos higienizadores do bom gosto, no botequim sem a serragem ao pé do balcão, no lead e no sublead da reportagem feita pelo telefone. Dizem que as operadoras de telefonia patrocinam o país. Acho que é o Pinho-Sol.

Alcione, a melhor cantora brasileira de muitos dezembros, é de outra freguesia. Mora num bairro distante, de ruas sujas pela passagem do tempo, em que as pessoas se mexem pelo desejo de serem felizes e não antenadas. Aqui, a Comlurb não recolhe o lixo sentimental das histórias que se acumulam nos corações. Elas viram patrimônio, ruga, gritos na madrugada e samba bom. O padrão de qualidade de Alcione é o da emoção vivida, a vida das mulheres adultas que ousam dizer seu nome. Já pintaram, bordaram. Não têm vergonha de vir a público, segurar o microfone e encher a boca para dizer com toda franqueza. O que vale mesmo é a “pegada” do distinto que lhe vai na cama. Aqui não se usa lençol de 500 fios da Alfaia. Nada de racionalismo grifado pela Maria Bonita, nem o sossego-tarja-preta dessas moças que se alimentam existencialmente com o tédio de um kone, dois kebabs e 28 kisses diferentes por noite, proteínas ralas do jogo rápido e das relações sem compromisso.

(...)Por isso, contra o tédio cantante, a sensaboria reinante, use Alcione. Sinta “o gosto do desejo”, deixe que “o corpo se inflame”, permita “a mão atrevida” e provoque no outro o que lhe “acenda a imaginação”. Chega de sussurro e som de besouro ímã nas letras das canções. Enfim, uma cantora que você sabe do que ela está falando. A vida, o amor e a arte só têm graça se puderem ser de outro jeito".

3 comentários:

Valéria Martins disse...

Grande Alcione! "Nâo deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar..."

Um beijo pra você, querido Pablo. Falamos na terça. Beijos,

Bruna Gala disse...

Este texto arrasou. A Alcione é mesmo isso tudo. É o subúrbio! Viva o subúrbio!! Esse povo da Zona Sul não sabe nada... Hahahaha!
E a nova Helena do Manuel Carlos, hein? Faz um papel de branca, mas o engraçado é que ela não é branca, seria mais fácil assumir esta questão e mostrar as dificuldades que ela tem de lidar.
Fica tudo tão fake... Tá tudo de cabeça pra baixo! Fora Manuel Carlos, viva Aguinaldo Silva!

Pablo Lima disse...

cara bruna, isso deve acontecer porque "os negros devem ter orgulho de ser brancos"...hehehe!