terça-feira, 5 de maio de 2009

mãos, asas e amores


PARA CRIS

Agora escrevo pássaros.

Não os vejo chegar, não escolho,

de repente estão aí,um bando de palavras

a pousar

uma por uma

nos arames da página,

entre chilreios e bicadas,

chuva de asas,

e eu sem pão para dar,

tão somente deixo-os vir.

Talvez seja isto uma árvore,

ou quem sabe, o amor.


OS AMANTES
Quem os vê andar pela cidade se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala entre seus dedos,
línguas doces lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.
São os amantes, sua ilha flutua à deriva rumo a mortes na relva,
rumo a portos que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem que enquanto rodam em sua amarga arena há uma pausa na criação do nada o tigre é um jardim que brinca.
Amanhece nos caminhões de lixo, começam a sair os cegos, o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam uma vez mais antes de haurir o dia.
Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então, quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita e lhes impõe os seus deveres quotidianos.



Toco a tua boca.Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.




Por Julio Cortázar (1914-1984); tradução de
Sidnei Schneider, 2007.

6 comentários:

Valéria Martins disse...

Li apenas um livro dele e me perturbou tanto que nunca mais li nenhum. Devia ler, para desfazer a impressão. O livro que eu li era de contos, "Bestiário". Brrrr...

Pablo Lima disse...

é, vc. começou pesado, "bestiário" é mesmo complicado!
bjocas!

Sidnei Schneider disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
CF disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pablo Lima disse...

Claro, caro sidnei.corrigido!

peço desculpas pelo ocorrido.

Sidnei Schneider disse...

ok, pablo. esclareço que traduzi
apenas o poema para cris. abraço