segunda-feira, 23 de março de 2009

no princípio era o texto 6 - ESCRITORAS



61. Primavera, Adriana Lisboa:
Cinzento, todo cinzento. Sob uma tarde cinzenta. Sob as asas havia também um pouco de amarelo, notei. A buganvília quase não tem folhas: só flores. Magenta, cor-de-rosa, um híbrido pleno e doloroso. Sobre a mesa da varanda, o cacto se curvou um pouco por causa da última ventania. E no entanto nos basta um momento como este. Telhas de zinco, telhas de cerâmica, um pára-raios. Um cata-vento em forma de flor: roxa, com o miolo preto.


62.Felicidade, Katherine Mansfield:
Embora Bertha Young já tivesse trinta anos, ainda havia momentos como aquele em que ela queria correr, ao invés de caminhar, executar passos de dança subindo e descendo da calçada, rolar um aro, atirar alguma coisa para cima e apanhá-la novamente, ou ficar quieta e rir de nada: rir, simplesmente.

63.Rahel, Hannah Arendt:
Que história! Fugitiva do Egito e da Palestina, aqui estou, e encontro ajuda, amor e cuidado entre vocês. Com sublime enlevo penso nessas minhas origens e em todos esses encadeamentos do destino, através dos quais as lembranças mais antigas da raça humana colocam-se lado a lado com os últimos desenvolvimentos.

64.De afrodisíacos , Adélia Prado:
Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo. Coisa do Teodoro, ele quem me contou, você sabe, marido depois de um certo tempo de casamento fala certas coisas com a mulher. O seu não fala? Pois é, e de novo tem um tempão que aconteceu.
65. Pensar é transgredir, Lia Luft:
Certa vez errei uma tecla do computador, e m lugar de perdas" saiu "peras". Eu ia corrigir mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores.

66.Um caso obscuro, Rachel de Queiroz:
Não quero fazer campanha contra quem acredita em espíritos, quem tem visões ou ouve "avisos". Espiritismo é religião tão respeitável quanto qualquer outra. Quero apenas prevenir meu amigo leitor contra alguma conversão apressada, porque o fato é que as forças da terra muitas vezes se misturam com as forças do céu.O caso que passo a contar como exemplo naturalmente que e verídico. Se fosse a cronista inventar um conto, teria que apurar muito mais o enredo e os personagens, dar-lhes veracidade e complexidade. E, aliás, como ficção ele não teria importância nem sentido. O seu valor único é a autenticidade.


67. Colheita, Nélida Piñon:
Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo.

68.Retrato de uma londrina, Virginia Woolf:
Ninguém pode se considerar expert sobre Londres se não conhecer um verdadeiro cockney¹; se não dobrar numa rua lateral, longe das lojas e dos teatros, e bater em uma porta particular numa rua de casas particulares.Casas particulares em Londres têm tendência a serem muito parecidas. A porta se abre para um vestíbulo escuro, ergue-se uma escada estreita; do patamar superior abre-se uma dupla sala de estar e nessa dupla sala de estar vê-se dois sofás, um de cada lado de um fogo crepitante, seis poltronas e três compridas janelas dando para a rua. Sempre é matéria de considerável conjectura o que acontece na segunda metade da sala dos fundos debruçando-se para os jardins de outras casas.

Cockney: nativo de Londres, especialmente do East End, ou falante de seu dialeto. (N. da T.)

69. O espelhinho, Lívia Garcia-Roza:
Custódio não saía sem o pente e sem o seu espelhinho. Pequeno, redondo, baratinho, comprado em camelot, como ele dizia, porque assim as coisas ganhavam outras credenciais. O espelhinho tinha no verso o escudo do seu clube do coração, o rubro-negro tantas vezes campeão. Flamengo! Flamengo!— Ainda não foi, Custódio?— Estou indo, estava nas preparatórias, lembrando do mais querido.— Chega. Vai...— Não estou parado, Clotilde, estou nos lances finais...— E Custódio se vestia, dançando sozinho, agarradinho com ele mesmo.— Pára com isso, homem...— Me preparando pra entrar em campo, mulher, mostrar meus dribles, voltar em grande estilo...

70.A Repartição dos Pães, Clarice Lispector:
Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos.

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