sexta-feira, 20 de junho de 2008

ÓBVIAS DESPROPORÇÕES

Luís Fernando Veríssimo

Um mito reincidente na história moderna é o da casta isenta. De uma aristocracia capaz de conviver com as sujeiras do seu tempo sem se sujar, e cujos valores nobres continuam nobres porque são fiéis só a eles mesmos, sem outro compromisso ou concessão.
Segundo o mito, você pode participar da história sem ser culpado da história. Pode até liderar a história sem comprometer o seu álibi. Que é o de estar, por definição, acima dessas coisas. O caso mais notório de casta isenta no século que passou foi o da aristocracia militar alemã.
Depois da guerra apareceram histórias da resistência da elite do exército profissional alemão, todos com "von" no sobrenome, àquele arrivista metido a estrategista, Hitler. Houve resistência, sim, mas a maioria dos "vons" seguiu Hitler com entusiasmo e quando tentaram matá-lo foi para negociar uma derrota que se tornara inevitável, não para impedir sua ascensão ou a continuação dos seus crimes. Mas persiste uma idéia que as velhas e boas virtudes prussianas sobreviveram sem mácula ou culpa à aventura nazista, que afinal foi uma coisa pequeno-burguesa.
Exemplo mais recente de pretensão à isenção aristocrática foi a de uma elite intelectual americana, Robert MacNamara e etc., que tentaram administrar a intervenção no Vietnã como se fosse um exercício de práticas de gerenciamento moderno, num vácuo moral em que também faltaram cálculos da disposição dos vietcongues e do crescente desânimo dos americanos para a guerra.
As mortes sem sentido não eram com eles. Eram os "melhores e mais brilhantes" de uma geração, os protótipos do que depois se chamaria — como elogio ou xingamento — de tecnocratas, e o fracasso pouco afetou seus currículos. MacNamara ainda se declarou contrito, anos depois, mas que se saiba nenhum morto ressuscitou por causa disto. A atual guerra no Iraque também não deixará entre os seus escombros e cadáveres as reputações dos que a idealizaram e perpetraram, todos protegidos pelos seus privilégios de casta.
Guardadas as óbvias desproporções: mesmo com toda a controvérsia sobre reparações pela repressão na época, novas investigações sobre fatos do passado como a Operação Condor e processos contra torturadores na Argentina e no Chile durante os anos de exceção, os militares do ConeSul conseguiram reservar sua pretensão a casta isenta do julgamento da História. O mito, afinal, teve mais força do que a justiça.

2 comentários:

Valéria Martins disse...

Legal o texto do Veríssimo! Meu pai era tio dele, sabia? Conexões familiares: a primeira esposa de meu pai, Lucinda, era irmã de Mafalda Veríssimo, esposa do Érico. Hoje todos estão mortos, infelizmente. Mas eu e o LF estamos aí, primos por afinidade.
Na verdade, ele era muito amigo do meu irmão por parte de pai, Carlos Eduardo, que também morreu (num acidente de carro). Se estivesse vivo, Carlito teria a idade do LF e eles certamente seriam amigos até hoje; foram criados juntos! (Muitas histórias tristes na minha família, mas há também as alegres).

***

Eu não fui no Carmelitas, não, mas fui em vários outros blocos. O casamento está descrito no blog, foi no Rancho Flor do Sereno, em Copacabana, 2008. Bjs

Pablo Lima disse...

boas afinidades! (:
beijocas!