sexta-feira, 6 de junho de 2008

MACHADADAS 1



"Há coisa de dois ou três anos, reli Dom Casmurro. Concluí que o livro é uma besteira, uma bobagem. Perguntei para meus amigos intelectuais: "Escutem, expliquem para mim, como é que vocês louvam este romance?"(...) Machado é uma pessoa falsa, não escreve com sinceridade.
Ele se escondeu, com todas as razões, pois havia a violência e o espírito escravocrata a perseguí-lo. Lá na Academia Brasileira de Letras há até uma frase dele que diz: "Esta é a glória que fica, eleva, honra e consola". É uma improvisação malfeita, um exemplo de escrever mal.
E Dom Casmurro foi apenas mais um livro que li, e apenas estou fazendo um comentário sem nenhuma pretensão de destruir sua reputação"
Millôr Fernandes

4 comentários:

Agnes R. disse...

O Millôr comete o mais raso dos equívocos ao fazer esse comentário: o de confundir a pessoa Machado de Assis com o artista Machado de Assis. O caráter de um homem (ou mulher) nada tem a ver com a obra que ele produz. Quer um exemplo? Richard Wagner, o compositor alemão, era um safado de marca maior, tomava a mulher dos amigos para si, pedia dinheiro emprestado aos judeus e depois escrevia artigos anti-semitas e por aí vai... No entanto, o que ele criou na música é absolutamente sublime. Pode-se não gostar, mas, incontestavelmente, a música erudita nunca mais foi a mesma depois dele.

Acho que o debate é sempre bem-vindo, até porque, como diria Nelson Rodrigues, "toda unanimidade é burra". A crítica existe justamente para promover reflexões e elevar o nível das obras produzidas. Mas com critério. Criticar por criticar, sem um pingo de embasamento e argumentação, qualquer um faz. Gostaria que o Millôr especificasse o que exatamente é uma "bobagem" no Dom Casmurro, uma obra que até hoje levanta os mais diversos questionamentos e interpretações dos estudiosos (não só de literatura) por seu caráter ambígüo e ficcionalmente revolucionário. E não estou falando da pergunta "Capitu traiu ou não?" porque isso sim é uma grande bobagem.

Enfim, isso tudo, na minha opinião, passa pelo que o Nelson Rodrigues (mais uma vez ele!) afirmou ser a "síndrome do vira-latas" que o brasileiro infelizmente possui. Em vez de se orgulhar de uma obra de primeiríssima linha de um autor nacional, não se sente capaz de dar o devido mérito àqueles que realmente deixaram uma contribuição valiosa para a literatura brasileira. E é a tal mania que se instaurou no meio artístico após a Semana de 22 e perdura até hoje de destruir e romper com todo o passado somente porque é passado, como se só o presente e o futuro importassem.

Agnes R. disse...

Tem mais: quem tem que "escrever com sinceridade" é o jornalista. O escritor nunca é sincero. Se o fosse, não faria literatura.

Pablo Lima disse...

caríssima, concordo que o Millôr tenha exagerado em alguns pontos; também achei a análise dele superficial, rolou uma falta de sensibilidade ao não ter adentrado no clima gostoso e envolvente da trama proposta pela obra. E A perspectiva subjetiva de Bentinho dá mesmo margem a isso, e é interessante ver que o Millôr nao entrou nesta onda; ele não percebeu que Machado joga com isso, joga com o subjetivo, joga com a possibilidade de o leitor vir ou não a se surpreender/identificar com o personagem principal.

Me oponho à possibilidade de estarmos lidando mais uma vez com "síndrome do vira-latas" por parte do Millôr neste caso específico; acho que a visão dele está mais para o lado do "falso saudosismo", daquela idolatria banal que temos aos do passado em detrimento aos atuais.
Precisamos mesmo dar margem à possibilidade de "Dom" não ser mesmo isto tudo de que dizem, e acho que é disso, ainda que o ache exagerado, que o Millôr quis tratar.

Espero que esteja preparada para o que o autor de Sagarana" disse sobre o bruxo do Cosme Velho.

Agnes R. disse...

Pablo, desprezar ou desmerecer o que de bom foi feito no passado para ressaltar o que de bom está sendo feito no presente é uma atitude tão perversa e burra quanto o inverso. Olhar "com olhos de ver" a obra do Machado (e de tantos outros escritores relevantes do passado) não é "idolatria banal", até mesmo porque poucos, muito poucos, são os que se propõem a ler criticamente a obra do autor. A maioria está muito mais interessada nas futricas, em saber se, ó dilema!, Capitu traiu ou não Bentinho, ou em atacar o Machado por seu "embranquecimento", como fez o Millôr (aliás, para colocar uma pá de cal nisso, recomendo o excelente "Machado de Assis, afro-descendente", de Eduardo de Assis Duarte). Quanto à "possibilidade de 'Dom' não ser mesmo isto tudo de que dizem", é preciso primeiro ler justamente "tudo isso que dizem" a respeito do romance para então discordar. Não acho que haja uma supervalorização do livro, por dois motivos:
1) A infinidade de novas leituras críticas que a obra vem suscitando desde a sua publicação até hoje nos meios acadêmicos e artísticos (sobretudo pelo cinema);
2) Francamente, quantas pessoas você conhece que já leram, espontaneamente (obrigado pela escola não vale), "Dom Casmurro"? A maioria não leu ou não gostou do livro, exatamente porque não conseguiu alcançar toda a engenhosidade da narrativa. Isso é supervalorização?