E agora, como eu fico nas manhãs de quinta-feira e aos domingos sem o Veríssimo no Globo?
Desconversa
(Luis Fernando Veríssimo)
‹– Quente, né?
‹– Acho que vai chover.
‹– É, tá com cara...
O tempo é um assunto seguro. De todas as coisas que as duas pessoas têm presumivelmente em comum (falam a mesma língua, estão ali com um destino ou um objetivo igual ou parecidos, são contemporâneas e são seres humanos) o fato de experimentarem as mesmas condições climáticas é a mais indiscutível de todas.
‹– Ontem deu uma refrescadinha.
‹– É verdade. Pelo fim da tarde.
‹– Isso.
Nenhum desacordo é possível, quando se começa conferindo o sentimento de cada um a respeito da temperatura vigente, sua memória do tempo que fez e seu palpite sobre o tempo que fará. Falar sobre futebol é arriscado. As probabilidades de torcerem pelo mesmo time não são boas. E se torcerem por times diferentes, por mais que tentem minimizar essa diferença, ela estará sempre lá, como lava incandescente sob a conversa, ameaçando irromper por
uma brecha. Política, nem pensar. E não caberia comentarem apenas suas afinidades básicas como espécie. Respirar fundo e dizer:
‹– Coisa boa, oxigênio, né?
‹– Nem me fala. Felizmente, ele compõe boa parte da vida terrestre.
– Se não fosse isso...
‹– Não quero nem pensar.
Ou:
‹– Não pude deixar de observar que a senhora é uma bípede mamífera de sangue quente, como eu.
‹– Que coincidência!
Melhor falar sobre o tempo. É o assunto mais à mão, e o único com cem por cento de garantia de interessar a todos e fazer parte de uma experiência universal.
– Se chover, talvez refresque de novo.
‹– Geralmente é assim.
A partir daí, a conversa pode derivar para outros tópicos de interesse geral, como a atividade de cada um, ou de universalidade garantida, como comida e novela das oito.
Existe outro assunto comum a toda a espécie, talvez o assunto prioritário da espécie, que só não inaugura todas as conversas porque também é o seu principal terror. A morte. Falamos do tempo para não falarmos da nossa outra afinidade óbvia, além da experiência do mesmo clima: a mortalidade. Imagine como seria.
– Você sabe que nós vamos morrer, não sabe?
– Sei. Todos sabem. É inescapável.
‹– O jeito é viver como se não soubéssemos. Você concorda?
‹– Sim. Seria impossível levar uma vida normal se não conseguíssemos conviver com nossa mortalidade, e acomodá-la, como uma hérnia inoperável.
– Temos é que negociar com a morte o tempo todo, como se negocia um armistício. Reconhecendo a sua vitória e o seu domínio, mas exigindo tratamento digno, como é o direito de todo prisioneiro.
– Mas não se pode racionalizar com a morte. A morte está além de qualquer racionalização. Ela não tem nenhum acordo para oferecer, nenhuma saída, nenhum meio-termo. Não tem nem uma explicação para nos dar. A única maneira de tratar a morte é nos seus próprios termos: ignorá-la, e tentar viver como se ela não existisse. Ou matá-la. O que você pensa do suicídio?
– Sei não. É o nosso corpo que nos mata. Matá-lo primeiro, francamente, me parece uma forma de colaboracionismo).‹ Mas negociar com a morte significa reduzir toda a nossa vida a um pedido de clemência, a uma lamúria interminável. Não é só a vida que fica inviável, é a conversa. Pois, tudo que não é com ou sobre a morte, é desconversa.
– Por sinal, você acompanha a novela?
Mas há quem diga que toda conversa, no fundo, é sobre sexo, outro assunto universal da espécie. O tempo é apenas um disfarce. Ou um código.
– Quente, né? (Topas?)
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